
Metas, horas extras, pressão e uma cultura que faz da saúde mental um tabu são causas de esgotamento entre executivos, funcionários e empreendedores
O trabalho pode ser gratificante, mas também sufocante — e não é de hoje. O personagem Carlitos, interpretado pelo britânico Charles Chaplin em um de seus mais marcantes filmes, trabalha na linha de produção de uma fábrica apertando peças metálicas. A pressão em seu setor aumenta: a mando da alta gestão, a velocidade na linha fica mais intensa. Com certa dificuldade, Carlitos acompanha o ritmo sob o olhar severo de seu gestor direto. Pouco tempo depois, novas ordens para aumentar a produtividade. Carlitos parece entrar numa espiral de ansiedade, acaba subindo na esteira e sendo levado para dentro da máquina. “Ele é louco”, grita um colega de trabalho. O episódio dá início a Tempos Modernos, filme lançado em 1936 que aborda situações cômicas de um universo recém-industrializado. Na época, a força global de trabalho sentia os impactos da Segunda Revolução Industrial. O contexto era de baixos salários, ambiente laboral precário e alto índice de desemprego — condições ideais para gerar a confusão mental vivida por Carlitos.
Quase 100 anos mais tarde, a chamada Quarta Revolução Industrial promete uma intensa automatização do trabalho. A inteligência artificial e o apoio de robôs deveriam deixar mais tempo para as pessoas se dedicarem às tarefas analíticas e às habilidades humanas. A evolução nos hábitos de consumo também deveria nos levar a uma rotina mais saudável e flexível, com mais espaço para o ócio. Por ora, não é o que se vê. Os anos 2020 deverão ser marcados como aqueles que popularizaram o burnout, ou esgotamento pelo trabalho.
O fenômeno é global — e o Brasil, infelizmente, é um dos destaques. No Japão, 70% da população economicamente ativa diz ter tido burnout. Em 2016, quase um quarto das empresas japonesas exigia que os funcionários cumprissem mais de 80 horas extras por mês, de acordo com o governo local. Em 2019, uma lei limitou as horas extras a 45 por mês. Nesse cenário, a subsidiária japonesa da empresa de tecnologia Microsoft testou, por um mês, o fim de semana de três dias para 2.300 funcionários. A produtividade aumentou 40%. A empresa pretende implementar o programa novamente, ainda sem data definida.
Na China, terceiro país com maior incidência de burnout — atrás do Brasil —, é comum os funcionários do polo tecnológico trabalharem das 9 às 21 horas durante seis dias por semana. A prática é defendida por grandes empresários, como Jack Ma, cofundador da varejista online Alibaba. Nos Estados Unidos, quarto país da lista produzida pela International Stress Management Association, 20% da população economicamente ativa sofreu burnout. Episódios de esgotamento são a ponta de lança de um momento global de discussão sobre as formas de trabalho.
Enquanto o burnout não é oficializado, as pesquisas que abordam a saúde mental do trabalhador costumam mensurar os níveis de estresse. Um estudo lançado pela consultoria Accenture em novembro avaliou um universo de mais de 2.000 funcionários no Reino Unido. O resultado mostra que 69% dos entrevistados já foram impactados por algum tipo de problema relacionado a saúde mental. No Brasil, a consultoria Betânia Tanure Associados fez medições de três tipos de estresse: baixo (quando o funcionário executa a tarefa com muita facilidade, sem prestar atenção, o que não contribui para a produtividade), construtivo (não nocivo e necessário para a motivação) e alto (este, sim, pode levar à síndrome de burnout).
O estudo avaliou executivos individualmente, seus times e as empresas em que atuam. Foram 538 respondentes das 500 maiores companhias brasileiras. Na comparação entre 2019 e 2018, houve aumento do estresse alto em todas as categorias. “O ponto crítico é o grau de incerteza presente nas organizações hoje”, diz Betânia, fundadora da consultoria, referindo-se aos novos concorrentes e às lógicas de negócio inovadoras que ganharam força com a tecnologia.
Apesar de haver profissões mais propensas ao desenvolvimento de um quadro de burnout — caso dos médicos e policiais —, não existe um perfil profissional específico para isso. Qualquer pessoa economicamente ativa pode ter uma crise. Os sintomas são igualmente diversos: existe uma gama ampla de sensações, que variam de acordo com a pessoa afetada.
Nem sempre uma alteração na agenda é suficiente para manter a saúde mental. Com uma carreira de mais de 20 anos nas áreas comercial, de marketing e de gestão de pessoas em empresas como Walmart e Grupo Pão de Açúcar, Sylvia Leão teve de adiantar uma mudança planejada na carreira. Chamada para liderar projetos importantes no Carrefour em 2015, ela encarou o desafio como a última etapa da vida profissional antes de passar a atuar como conselheira. Inicialmente, a ideia era ficar cinco anos na empresa, mas a síndrome de burnout, iniciada em 2018, abreviou o processo. “Eu estava tão envolvida e cheia de desafios que demorei a perceber os sinais que o corpo me mandava”, diz.
Além do cansaço intenso, Sylvia tinha uma sensação difícil de definir, mas que ela descreve como angústia. A saída foi retornar à psicanálise e reconhecer seus limites. Hoje, a executiva participa de cinco conselhos de administração e entende que essa é a carga ideal de intensidade de trabalho para ela. Se o funcionário pode rever seus processos laborais, a empresa tem papel fundamental na mudança. O bem-estar também evita gastos. No Brasil, o burnout custa para os empregadores cerca de 80 bilhões de dólares ao ano. Nos Estados Unidos, o montante é de 300 bilhões de dólares.
Para evitar os resultados negativos causados pelo estresse alto e pelo burnout, a empresa alemã de tecnologia SAP começou uma campanha global para acabar com o estigma de falar sobre saúde mental. Em maio, na conferência global anual da empresa em Orlando, nos Estados Unidos, um painel sobre saúde mental foi apresentado por Cynthia Germanotta, mãe da cantora e atriz Lady Gaga. Mãe e filha lançaram há oito anos uma fundação para combater o bullying e os problemas de saúde mental ocasionados pela prática. O interesse dos funcionários pelo tema foi tão grande que um comitê de saúde mental foi criado globalmente. No Brasil há várias práticas, como a execução de peças de comunicação escancarando o tema e a promoção de palestras com psicólogos.
Para promover uma mudança cultural, é preciso inserir a alta liderança nos debates e nas ações. Há seis anos, desde que assumiu a presidência da SAP no Brasil, Cristina Palmaka realiza o Café com a Cris, encontro mensal com uma dezena de funcionários que voluntariamente se inscrevem para debater assuntos como gestão e vendas. Inspirado nesse modelo, o Chá com a Cris, uma reunião para falar exclusivamente de saúde mental, teve início em agosto. Nos dois primeiros encontros apenas gestores puderam participar, e os seguintes foram abertos para todos.
Os funcionários compartilham experiências e ideias de como criar um ambiente seguro, no qual falar de ansiedade e depressão não seja um problema. “É comum que as pessoas tenham crises pessoais e no trabalho. Fomentar a resolução gera um ambiente seguro, melhora o clima e os resultados”, diz Cristina. Com o objetivo de integrar funcionários e quebrar o tabu da saúde mental, algumas companhias buscam palestras de espiritualidade, coaching e até teatro corporativo, baseado em concepções de que cada pessoa assume um papel. A disputada budista monja Coen, autora de best-sellers e com mais de 2 milhões de seguidores somados no YouTube e no Instagram, diz ter dobrado a quantidade de palestras sobre espiritualidade nas companhias ao redor do Brasil nos últimos cinco anos. “As empresas precisam de funcionários emocional e espiritualmente saudáveis para ter lucro. Os gestores se deram conta disso e me procuram cada vez mais”, afirma.
Promover um ambiente seguro para tratar questões de saúde mental no trabalho abrange os sentimentos que nascem da porta para fora. Pessoas homossexuais, por exemplo, são cinco vezes mais propensas a tentar suicídio do que as heterossexuais. Entre os jovens negros o risco de cometer suicídio no Brasil é 45% maior do que o de jovens brancos. Na estratégia de quebrar o estigma, na SAP os grupos de diversidade são prioritários. Mas não é só nas grandes empresas que esse problema aparece. Na agência de publicidade Mutato, 27% dos profissionais se declaram negros, 64% são mulheres e 40% se declaram LGBTI+; mesmo assim, as pessoas desses grupos relataram se sentir mais vulneráveis e menosprezadas do que as outras. Depois disso, a empresa começou a promover palestras com psicólogos e sessões de ioga. Mas foi só em outubro de 2019 que o cofundador e presidente Andre Passamani percebeu a oportunidade de incentivar a terapia individual para os funcionários interessados. “Tenho 46 anos e, em minha juventude, saúde mental não era um assunto abordado.
Apenas recentemente ações de prevenção foram mais estruturadas”, diz. Desde outubro todos os funcionários da Mutato podem fazer terapia online por meio do aplicativo da Zenklub, uma startup que cresce 15% ao mês. As sessões são custeadas pela empresa e tiveram adesão de 30% dos funcionários. Apesar de as sessões serem confidenciais, os gestores conseguem saber em quais áreas da empresa as questões emocionais das pessoas estão relacionadas ao trabalho. “Pretendemos criar um histórico, traçar novos planos e melhorar o clima interno”, diz Passamani.
A exposição das doenças do trabalho também está atrelada às diferenças geracionais. Nos Estados Unidos, segundo um estudo da consultoria Deloitte, 84% da geração millennial (nascidos entre 1980 e 1995) diz ter experimentado a exaustão no trabalho atual, em comparação com 77% de todos os entrevistados. Quase metade dos millennials diz que deixou um emprego porque se sentiu esgotada. Consultora de recursos humanos, Sofia Esteves, da Cia de Talentos, acredita que a falta de experiência pode ter impacto nocivo sobre o trabalhador jovem. “O burnout ocorre por um efeito cumulativo, mas também tem relação com a quantidade de pressão que o trabalhador aguenta”, diz. “As gerações mais novas não têm o acúmulo, mas, em geral, toleram menos pressão.”
O quadro parece piorar quando o funcionário gosta do que faz. Foi o que aconteceu com Damião Silva, de 35 anos. Depois de entrar em uma fundação filantrópica, aos 18 anos, como monitor educacional, ele mostrou boa capacidade de gestão de pessoas e teve sucessivas promoções. Com dez anos de casa, controlava uma equipe de cerca de 400 pessoas. “Eu chegava a trabalhar 12 horas por dia, além de dedicar outras 4 horas diárias a cursos de especialização”, diz. Demissões na organização intensificaram ainda mais o ritmo.
Quando percebeu sinais como dificuldade para dormir e dores de cabeça, Silva já tinha engordado 20 quilos. Uma troca na gestão piorou a situação: a nova chefe cobrava trabalho até nas férias. A persistência dos sintomas levou o profissional buscar ajuda médica. Em 2018, ele foi diagnosticado com burnout, afastou-se do trabalho e, hoje, faz psicoterapia e toma medicamentos, sendo acompanhado por psiquiatra e neurologista.
Se não tem ajudado a evitar o esgotamento por trabalho, a tecnologia pode ser uma aliada no diagnóstico e no tratamento. Em 2016, o Hospital Albert Einstein estruturou um programa para cuidar da saúde de seus funcionários e dependentes por meio de uma clínica interna que pode atender cerca de 30.000 pessoas. Em 2018, o programa foi reestruturado para lidar também com questões emocionais. “Um profissional feliz e saudável atende melhor seus pacientes”, diz Sidney Klajner, presidente do Einstein. Os funcionários passaram a ter, por exemplo, assistência jurídica e atendimento psicológico 24 horas por dia, pelo telefone, e acompanhamento após retornar por afastamento de burnout e estresse. Quando voltam, eles respondem a um questionário de 50 perguntas. A intenção é que com essas respostas haja uma base de dados para, por meio de inteligência artificial, evitar sintomas negativos de saúde mental.
Especialistas americanos, porém, afirmam que o uso efetivo da inteligência artificial na saúde deve acontecer somente depois dos próximos cinco anos. O que se espera é que os dados sejam usados para diagnosticar sutilezas emocionais que passam despercebidas mesmo para os médicos. Para os funcionários, executivos e empreendedores brasileiros, outra boa notícia pode vir de uma retomada mais consistente da economia. A insegurança econômica, como alerta Pfeffer, da Stanford, é um grande gatilho de estresse. As respostas, como se vê, devem vir de cada um, das empresas, da ciência, da tecnologia, dos governos. O alerta não é de hoje: foi dado por Chaplin há mais de 80 anos.
“A ÚNICA SOLUÇÃO É UM REDESENHO DO MODELO DE TRABALHO”
Em 2022, a 11a edição da Classificação Internacional de Doenças passa a valer — e inclui a síndrome de burnout como um problema ligado ao emprego e… ao desemprego. As tensões relacionadas à possibilidade de ficar sem trabalho são um dos temas tratados no livro Morrendo por um Salário, lançado por Jeffrey Pfeffer em 2018. Professor de comportamento organizacional da Escola de Negócios da Universidade de Stanford, Pfeffer é radical ao dizer que a única saída eficaz para conter o avanço dos casos de burnout é um redesenho do modelo de trabalho atualmente em vigor. Ele falou a EXAME por telefone. Veja os melhores trechos da entrevista.
Existem casos de burnout no passado — talvez desde a Primeira Revolução Industrial, quando as relações trabalhistas não eram tão bem regulamentadas. Por que temos esse aumento de casos no século 21?
Quando analiso o contexto de hoje e o contexto de épocas passadas, acredito que a mudança mais significativa seja a insegurança econômica. Hoje, as taxas de desemprego estão altas em diversos países, há muita competitividade e as demissões são iminentes. Isso produz um ambiente de muita tensão, propício para abalar a saúde do trabalhador. Além disso, temos os efeitos da “economia sob demanda”, com freelancers e terceirizados que vivem a insegurança de não saber quando terão o próximo trabalho.
Que aspectos do ambiente corporativo são motores da síndrome de burnout?
A saúde do empregado geralmente é afetada por uma série de decisões tomadas pelo empregador. Além da possibilidade de demissão, o trabalhador pode ter dificuldade de equilibrar a vida pessoal com a profissional, ficar exposto a expedientes mais longos, à pressão pela produtividade e à pouca liberdade de decisão no ambiente de trabalho. Pesquisas mostram que o estresse ocupacional prolongado pode levar a doenças, como diversos tipos de câncer, para além da síndrome de burnout.
Nesse sentido, as práticas adotadas por algumas empresas, como dar benefícios relacionados a psicoterapia e atividade física, parecem não ser suficientes.
As pessoas podem até aderir a essas saídas, mas a única solução eficaz para preservar a saúde das pessoas é um redesenho do modelo de trabalho para criar ambientes profissionais saudáveis, que promovam a sustentabilidade humana. Isso passa, por exemplo, por um real compromisso da companhia com a mudança. Por vezes, é significativa a quantidade de trabalho desnecessário executado por empregados. É um resultado de políticas de trabalho de longa data que, hoje, já não têm mais propósito. Muitas empresas não enxergam a necessidade de adaptar seus modelos de funcionamento, e acabam perdendo boas oportunidades de reduzir o estresse no trabalho.
Fonte: EXAME